Dinossauros, mercado financeiro e concorrência abrasiva

 em Informativo DBBA

Por Pedro Marcos Nunes Barbosa.

 

Crédito: Reprodução/Folha de S.Paulo/Twitter

No dia 16.09.2021 a Folha de São Paulo1 noticiou que uma Fintech lançou uma campanha publicitária curiosa: contratou-se uma pessoa fantasiada de dinossauro para, diante de uma agência bancária de conglomerado tradicional de varejo, insolitamente tentar ingressar no estabelecimento, e trotear pelas suas redondezas.

O poder2 simbólico3 de vivificar uma figura4 do período Cretáceo – em pleno século XXI – é mesmo impressionante: seria a atividade empresarial bancária fadada a obsolescência pela evolução dos mercados? Segundo o Banco Central do Brasil (BCB), no final do primeiro semestre de 2021, tomados em conjunto, Banco do Brasil, Bradesco, Caixa Econômica Federal e Santander respondiam por mais de 77% dos ativos e 81% dos depósitos do Sistema Financeiro Nacional. Nos depósitos à vista e na caderneta de poupança, fontes de captação mais baratas, a participação desses conglomerados superava sendo 92%! O ingresso de novas sociedades empresárias, com distintos modelos de negócio, ameaçaria o poder econômico do quinteto financeiro mais famoso do Brasil? O Conselho para a Estabilidade Financeira define ‘fintech’ como “inovações financeiras, habilitadas por tecnologias que podem resultar em novos modelos de negócios, aplicativos, processos ou produtos com efeitos tangíveis nos mercados, nas instituições financeiras e na prestação de serviços financeiros5. Tal definição ampla abarca tanto fornecedores de insumos nas atividades de computação em nuvem, gestão da informação e biometria para intermediários financeiros, quanto instituições que atuam junto aos usuários finais de serviços de depósito, pagamentos, investimentos, empréstimos, seguros, planejamento financeiro e crowdfunding. Trata-se de grupo heterogêneo, que abarca tanto instituições reguladas e pertencentes a conglomerados, quanto empresas não reguladas, como as exchanges de criptoativos.

Respostas definitivas às perguntas ventiladas representariam mais uma atividade de pitonisa, do que análises estruturais-prospectivas seguras. Se de um lado é inegável que novas tecnologias e arquiteturas econômicas costumam revolucionar o status quo (como foi a telefonia celular para o mercado dos pagers), de outra monta, a depender do contexto, não se pode dizer que o surgimento de produtos ou serviços signifique o sepultamento do que antes já existia6 (a exemplo do Cinema que não extirpou o Teatro, e da Fotografia que não extinguiu a Pintura).

As novas tecnologias afetam a estrutura dos mercados por diminuírem barreiras à entrada, permitindo o funcionamento de empresas em nichos mercantis desprezados ou atendidos de maneira insuficiente pelos concorrentes já estabelecidos. Evidentemente, os últimos possuem capacidade financeira para incorporar tecnologias bem-sucedidas ou mesmo tentar adquirir novos entrantes de sucesso, como o Itaú tentou fazer com a XP. Tampouco é possível ignorar que, uma vez consolidadas, ‘fintechs’ tendem a formar conglomerados. A complementariedade, aliás, é uma forma socialmente útil de promoção da concorrência ou do desenvolvimento de variedades de nichos. Assim, alguns destinatários podem preferir a tradição e a estabilidade a preços mais elevados, e outros tantos podem ter como predileção a inovação com maior risco, porém com valores mais acessíveis.

No mercado de crédito, o impacto positivo das ‘fintechs’ é mais complexo devido à inexistência de consenso sobre a relação entre concentração e spread bancário7. Devido às assimetrias de informações entre prestamistas e tomadores, a concorrência não se dá por preços, mas pela seletividade na oferta de linhas de crédito de menores taxas de juros8. Sob essa lógica, novas tecnologias para a análise de crédito diminuem o custo da seleção de potenciais tomadores, viabilizando a oferta de empréstimo para grupos de precária ou inexistente inclusão financeira. Não se pode deixar de mencionar as Sociedades de Empréstimos entre Pessoas (SEP) que, ao oferecerem o peer-to-peer lending, são simultaneamente opção de crédito para uns e de investimento para outros.

Reputação, fidúcia e estabilidade são mesmo características buscadas por boa parte dos consumidores que desejam investir, contrair crédito ou fazer uso de outros serviços financeiros. E o capital social de tais instituições é substancialmente mimetizado pelo uso de atrativos signos distintivos, como são as marcas. Assim, de um lado a marca facilita o processo mnemônico de conexão entre os produtos/serviços do fornecedor e do interessado, mas, de outro, pode ser uma pujante ferramenta que sirva para maximizar barreiras à entrada9 de novos atores.

Deste modo, toda empresa, como é o caso das fintechs, que visa a ingressar no mercado relevante lidará durante algum tempo com: (i) a desconfiança dos consumidores de outros agentes econômicos no sentido de lhe darem uma chance; (ii) o fato de que sua atividade e signo distintivo é incógnito do grande público; e (iii) a improbabilidade de se atrair público com produtos, serviços e preços equânimes àqueles dos sujeitos já estabilizados. Portanto, o emprego de trilhas originais, o pensar fora da caixa e a adoção de técnicas publicitárias diferenciadas acabam sendo alguns dos vetores mais comuns na busca de consolidação empresarial.

Quando se coteja o mercado relevante das instituições financeiras, o ambiente publicitário não é mesmo um dos mais agressivos. Em geral, as peças publicitárias na grande mídia informam o grande público sobre os arquétipos e princípios da empresa, seu longo tempo no mercado, e a suposta qualidade no atendimento aos clientes. Ou seja, são peças auto referenciais – muitas vezes de própria adulação. Não é mesmo corriqueiro que um dos gigantes setoriais dirija um discurso abrasivo ao seu concorrente, ainda que as práticas competitivas sejam explicitamente duras.

Fato é que qualquer forma concorrencial traduz em dano10 aos seus participantes, mas o excessivo poder econômico pode reduzir a eficiência dos mercados, acarretando perda de bem-estar aos seus possíveis destinatários, em especial consumidores. Não por outra razão, a livre concorrência e a defesa do consumidor são princípios fundamentais da ordem econômica (art. 170, IV e V, da CRFB). Ademais, instituições financeiras com posição dominante tendem a ser grandes demais para ‘quebrar’ devido o potencial de contágio para todo o Sistema Financeiro Nacional, sendo desejável certa pulverização.

Assim, no caso da inventiva ‘fintech’ que adotou a criativa medida publicitária (com um réptil), mesmo que o discurso de chalaça, a simbologia sarcástica, possa ser distinta da retórica comum no mercado relevante, ainda assim tal traduz uma virtuosa forma de liberdade de expressão (art. 5º, V, da CRFB).

O discurso comercial11 também é uma via comunicativa constitucionalmente assegurada, a exemplo do que ocorre na publicidade comparativa12, na comunicação promocional tradicional ou até na emanação de propagandas típicas ao recall (art. 10, parágrafo 1º, do CDC). Não é a abrasividade ou agressividade13 concorrencial discursiva, per se, um indício de deslealdade.

Mas o contrário pode não ser verdadeiro. Ou seja, se um dos “grandes répteis” setoriais, o agente sênior, se sentir insatisfeito com um novo entrante no mercado – por si – explorado e lançar uma campanha publicitária mordaz contra o agente econômico júnior, tal poderá atrair um regime próprio da Lei 12.529/2011. Portanto, a expressão econômica do emissor (o sujeito) discursivo crítico importa tanto quanto o conteúdo (o objeto) comunicado! Nem tudo o que é lícito ao novo entrante será à sociedade empresária consolidada, pois seus atos podem servir de ilegítima obstrução mercantil14.

Contudo, não é exigido ao destinatário da técnica publicitária do Tiranossauro que se comporte biblicamente como endossado em Lucas 6:2915, eis ser despiciendo que dê a outra face. É lícito e legítimo que as “vítimas” da divertida publicidade possam praticar alguma forma moderada de retorsão e, quiçá, contribuir para mudar o reinante discurso do politicamente correto e das peças publicitárias enfadonhas e blasés.

As vicissitudes mercantis baseadas em publicidades criativas, o ingresso de novos agentes, a potencialidade de desfazimento da aglutinação de poder econômico, a incidência de um funtor centrífugo são possibilidades benquistas. Que o ambiente de negócios no Brasil conte com uma explosão de novos dinossauros e com outros animais menores também.

Pedro Marcos Nunes Barbosa – Sócio de Denis Borges Barbosa. Professor do Departamento de Direito da PUC-Rio

Rafael Bianchini Abreu Paiva – Especialista do Banco Central. Professor da GVLaw. Os argumentos aqui apresentados são pessoais e não necessariamente refletem a posição institucional.

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1
  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painelsa/2021/09/fintech-coloca-dinossauro-em-portas-de- agencias-e-provoca-bancos.shtml, publicada na Coluna Painel S.A. de Joana Cunha, notícia em coautoria com Mariana Grazini e Andressa Motter. A foto destacada não teve a autoria indicada na matéria, o que atrai o regime do art. 5º, VIII, ‘b’ da Lei 9.610/98.

2 “Os símbolos são os instrumentos por excelência da «integração social»: enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação” BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 15ª Ed, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011, p. 10.

3 SCHUMPETER, Joseph Alois. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961, p. 106.

4 “Em Linguística, a natureza do significado deu lugar a discussões, sobretudo referentes a seu grau de “realidade”; todas concordam, entretanto, quanto a insistir no fato de que o significado não é uma “coisa”, mas uma representação psíquica da “coisa”” BARTHES, Roland. Elementos da semiologia. Tradução, Izidoro Blikstein. 15ª Edição, São Paulo: Cultrix, 1964, p. 46.

5 https://www.fsb.org/work-of-the-fsb/financial-innovation-and-structural-change/fintech/

6 BENJAMIN, Walter Benedix Schönflies. A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica. In BENJAMIN, Walter Benedix Schönflies. DETLEV, Schöttker. SUSAN, Buck-Morss MIRIAM, Hasen. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção. Tradução Marijane Lisboa e Vera Ribeiro; organização Tadeu Capistrano. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012, p. 18.

7 SANTOS, Thiago Trafane Oliveira. High Lending Interest Rates in Brazil: cost or concentration? BANCO CENTRAL DO BRASIL, Working Paper Series, 550, May 2021.

8 STIGLITZ, Joseph Eugene; WEISS, Andrew (1981). Credit rationing in markets with imperfect information. The American Economic Review, vol. 71, nº 3, 1981.

9 “Marca, ao invés de garantia estatal de qualidade, incorpora todas as características que o mercado atribui ao bem. Incorpora, portanto, a reputação do bem e é um poderoso veículo de transporte de preferências. Tão poderoso que, por vezes, é capaz por si só de concentrar as preferências, constituindo um poderoso meio de criação de monopólios. Não há mais qualquer resquício da certificação estatal de qualidade. No mundo moderno, essa função é exercida pelas regras administrativas de certificação de produtos e pelos dispositivos do direito do consumidor” SALOMÃO FILHO, Calixto. Teoria Crítico-Estruturalista do Direito Comercial. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 140.

10 “Toda a concorrência magoa. No ponto de vista meramente económico, os concorrentes causam-se mutuamente prejuízos. Mas o prejuízo só poderá atingir o limiar da relevância, no ponto de vista jurídico, se o acto puder ser qualificado como de concorrência desleal” ASCENSÃO, José de Oliveira. Concorrência Desleal. Coimbra: Almedina, 2002, p. 204.

11 “Isso porque a produção industrial estandardizada impõe um consumo em massa que, para lhe dar vazão, carece ser motivado por todos os meios de comunicação (mass media); do contrário, os estoques se acumulam, as duplicatas não giram, o dinheiro não circula e tudo se paralisa. Disse bem o órgão oficial do Instituto Nacional da Consumação de França: “Qui dit società de consommation dito publicite”” DUVAL, Hermano. Concorrência Desleal. São Paulo: Saraiva, 1976, p. 108.

12 “A publicidade comparativa pode ser definida como método ou técnica de confronto empregado para enaltecer as qualidades ou o preço de produtos ou serviços anunciados em relação a produtos ou serviços de um ou mais concorrentes, explícita ou implicitamente, com o objetivo de diminuir o poder de atração da concorrência frente ao público consumidor. 5- A despeito da ausência de abordagem legal específica acerca da matéria, a publicidade comparativa é aceita pelo ordenamento jurídico pátrio, desde que observadas determinadas regras e princípios concernentes ao direito do consumidor, ao direito marcário e ao direito concorrencial, sendo vedada a veiculação de propaganda comercial enganosa ou abusiva, que denigra a imagem da marca comparada, que configure concorrência desleal ou que cause confusão no consumidor. Precedentes. 6- Na hipótese dos autos, conforme as premissas fáticas assentadas pelo juízo de origem – soberano no exame do acervo probatório -, verifica-se que a publicidade comparativa veiculada pela recorrida não violou os ditames da boa-fé, foi realizada com propósito informativo e em benefício do consumidor, não tendo sido constatada a prática de atos de concorrência desleal, tampouco de atos que tenham denegrido a marca ou a imagem dos produtos das recorrentes” STJ, 3ª Turma, Min. Nancy Andrighi, REsp 1668550/RJ, DJ 26.05.2017.

13 “A concorrência agressiva, ainda que com a finalidade de desviar a clientela alheia e arrogar-se uma melhor posição no mercado, não é reprimida pelo ordenamento, sendo, aliás, inerente ao próprio funcionamento do capitalismo. A entrada no mercado de novos concorrentes e o ataque à clientela alheia são antes incentivados pela própria Constituição Federal, que em seu artigo inicial estabelece a livre iniciativa como um dos fundamentos da República e no artigo 170, inciso IV, ressalva a livre concorrência dentre os princípios que regem a atividade econômica.” TJSP, AC 4719054600, 4ª Câmara de Direito Privado, Des. Francisco Loureiro, 29/01/2009.

14Ahora bien: el efecto obstruccionista, que es la razón última por la cual se prohíbe esta práctica, sólo puede producirse si las empresas en conflicto presentan esta asimetría en cuanto a su envergadura. Resulta algo chocante que el acto desleal sólo pueda ser cometido por empresas grandes” CUEVAS, Guillermo Cabanellas de las et alii. Derecho de la Competencia Desleal. Buenos Aires, Argentina: Heliasta, 2014, p. 348.

15 “Ao que te ferir numa face, oferece-lhe também a outra; e ao que te houver tirado a capa, nem a túnica recuses”.

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Publicado no Jota, no dia 5/10/2021. Veja o original aqui.